CANÇÃO

Valdemar Dória (Tobias Amérika), nasceu em S. Tomé e Príncipe em  1974

Quem embarcou no porão

Fechado a sete chaves,

Apertado entre traves,

Sem ver sol sem ver a lua?

Foi o preto!

Quem deixou a terra,

-filho ingrato que fugiu

ao pai e à mãe que não mais viu,

p’ra ir acabar como um cão?

Foi o preto!

Marcelo Veiga

CAMINHOS

René Tavares, nasceu a 4 de novembro de 1983 em S. Tomé e Príncipe

Amanhã,

Quando as chuvas caírem,

As folhas gritarem d’esperança

Nos braços das árvores,

Os homens se esquecerem de seus passos incertos,

A força do Sol e da Lua vergastarem,

Implacavelmente,

O resto da terra.

Tomaz Medeiros

A UMA OLIVEIRA

Luis Dourdil, nasceu a 8 de novembro de 1914 em Coimbra e faleceu a 1989 em Lisboa, Portugal

Velha oliveira,  ó irmã do tempo e do silêncio, 

algo de ti se me tornou hoje perceptível; 

algo que eu não conhecia e me fez parar 

na ténue sombra que teces no caminho; 

algo que é uma doce corola de contacto.

António Cabral

LONGE DAQUI

Pedro Olayo, nasceu a 2 de setembro de 1930 em Coimbra, Portugal

Em sonho lá vou de fugida, 

Tão longe daqui, tão longe. 

É triste viver tendo a vida, 

Tão longe daqui, tão longe. 

Mais triste será quem não sofre, 

Do amor a prisão sem grades. 

No meu coração há um cofre, 

Com jóias que são saudades.

Hernâni Correia

EU, O POVO

Hamilton Membir, nasceu em Moçambique

O vento sopra com força

A água corre com força

O fogo arde com força

Mutimati Barnabé João

QUISSICO

Gumatsy, Augusto da Silva Magaia, nasceu a 23 de março de 1968 em Maputo, Moçambique

Deixei o sol

na praia de Quissico

De bruços

sobre o Verão

eu deixei o Sol

na extensão do tempo

Molhando, quase líquido,

o dia afundava

nas fundas águas do Índico

A terra

se via estar nua

lembrando, distante,

seu parto de carne e lua

Mia Couto

SERÁS TU?

Luís Lacerda, nasceu a 06 de julho de 1955 em Bolama, Guiné Bissau

Serás tu

a dar-me

de beber

o cálice do Amor

e fazer-me

provar a ternura

dos afagos interditos?

Filomena Embaló

VOZ DA CRIANÇA

Luis Balata, nasceu a 16 de março de 1963 em Bissau, Guiné Bissau

Não pediste a nascença, criança

Mas nasceste!

Sem hospital, brinquedos e lar

Não pediste trabalho, criança

Mas trabalhaste!

Nos passeios como sapateiro

Nas estradas como limpa para-brisas

Para sustentar a família

Samuel Pinto Fernandes

POSTAL

Djim Graça, nasceu em 1937 em Ponta do Sol, Santo Antão, Cabo Verde

deste lado da ilha

o cais e a cidade velha

datam de muito tempo,

mas a cidade é um poema

não cresceu. é sempre a mesma.

todos os dias igual

Manuel Lopes

ROSA DOS VENTOS

David Levy Lima, nasceu a 13 de outubro de 1945 em Santo Antão, Cabo Verde

O vício se alastra noite dentro

e a cidade se rende ao rumor de vozes

Todavia não era mais este o tempo sombrio

em que cada um se fecha dentro da sua dor

ou finge sorrir dentro da falsa alegria

Contornado o vazio da memória

apenas os pássaros enlouquecidos buscam agora

o rumo perdido da rosa dos ventos. 

José Vicente Lopes

VER

Alexandre Rapoport, nasceu a 1929 em Rio de Janeiro, Brasil

O dia. Arcos da manhã 

em nuvem. Riscos de luz 

como vidros arriados. 

O claro. A praia armada 

entre a sintaxe do verde. 

Áreas do ar. Aves 

navegando as lajes 

do azul.

António Carlos Secchin 

DOS FIOS DESTA SEPARAÇÃO, ABRE-SE UMA PORTA DISCRETA, PEQUENA

Alessandro Cicarelli, nasceu a 25 de janeiro de 1811 em Nápoles e faleceu a 5 de maio de 1879 em Santiago do Chile, Brasil

quase imperceptível

economizar uma ou outra palavra não faz diferença

são fios longos

um emaranhado de ondas e feixes de luz

não faz grande diferença a geografia das frases

falamos articulando tons e gestos apenas

nada transcorre de fato nas frases

nada nas palavras ou no entre-sílabas

mas fios

um emaranhado que às vezes transparece

às vezes some

Annita Costa Malufe

EU QUERO ABANDONAR-ME

Dília Fraguito Samarth, nasceu a 7 de maio de 1956 em N'Dalatando, Angola

eu quero abandonar-me

ao crepuscular ensombramento

das espinheiras

diluindo-se nas chanas

de fumo...

eu quero abandonar-me

ao grito das mães

chorando os seus filhos

fugidos na guerra...

Jorge Arrimar

ANTI-HERÓICA

Délio Jasse, nasceu a 28 de dezembro de 1980 em Luanda, Angola

não como herói te canto, pois não faltam

os que te erguem bandeiras desfraldadas

tu como herói - guias, eles, no entanto

da tua condição

entre esta escuridão

e a noite que te atrai

Mário António

CALAI

Natalino e António, jovens timorenses

Calai

Canas e bambus

Árvores e "ai-rús"

Palmeiras e capim

Na verdura sem fim

Do pequeno Timor,

Calai

Francisco Borja da Costa

DESCOBERTA

Osvaldo Reis, nasceu a 13 de outubro de 1968 em Santana, S.Tomé e Príncipe

Após o ardor da reconquista  

não caíram manás sobre os nossos campos.   

E na dura travessia do deserto 

Aprendemos que a terra prometida  

era aqui. 

Ainda aqui e sempre aqui. 

Duas ilhas indómitas a desbravar.   

O padrão a ser erguido  

pela nudez insepulta dos nossos punhos. 

Conceição Lima

ÁFRICA NÃO É TERRA DE NINGUÉM

Neto Silva, nasceu a 5 de agosto de 1983 em S. Tomé, S. Tome e Princípe

Filhos! a pé! a pé! que é já manhã!’

Esta África em que quem quer dá co’o pé

Esta negra África escarumba, olé!

Não a q’eremos mais sob o jugo de alguém,

Ela é nossa mãe!

Marcelo Veiga

O NOSSO MUNDO É ESTE

Zé Penicheiro, nasceu a 1921 na Candosa, Tábua, Portugal

O nosso mundo é este 

Vil suado 

Dos dedos dos homens 

Sujos de morte. 

Um mundo forrado 

De pele de mãos 

Com pedras roídas 

das nossas sombras. 

José Gomes Ferreira

MEDITAÇÃO

Edite Melo, nasceu a 1947 em Torres Vedras, Portugal

Sozinho, neste lugar sem portas,

neste penedo de fontes,

sinto a força da poesia

no calor rústico dos montes

Não me peçam 

que traga da aldeia

a paz do arado

a rasgar a terra

Carlos Carranca

É PRECISO PLANTAR

Gemuce, nasceu a 17 de agosto de 1963 em Quelimane, Moçambique

É preciso plantar

mamã

é preciso plantar

é preciso plantar

nas estrelas

e sobre o mar

nos teus pés nus e pelos caminhos

é preciso plantar

Marcelino dos Santos

METAMORFOSE

Francisco Xavier Menezes, nasceu a 26 de fevereiro de 1969 em Maputo, Moçambique

a Mãe não era ainda mulher

e depois ficou Mãe

e a mulher é que é a vagem e a terra

então percebi a cor

e metáfora

mas agora morto Adamastor

tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada

das mambas cuspideiras nos trilhos do mato

Luís Carlos Patraquim

ENQUANTO VIVER ACREDITAR

Lilison, Januário Tomás Sousa Cordeiro, nasceu a 28 de fevereiro de 1959 em Bolama, Guiné Bissau

Se ainda a chuva nos rega e visita

Se ainda correm as águas dos corubais

Se ainda temos vozes ou tivemos ancestrais

Ainda acreditamos na vida e no maior Artista

Se ainda cantamos nossos gumbés

Se ainda nossos sikós e tambores uivam

E se ainda defronte a nós os dragões se curvam

Ainda mudaremos os kuntangús e os kanapés

Delo Belo

ELA I

Lemos Mamadjan Hipólito Djata, nasceu a 26 de março de 1981 em Bafatá, Guiné Bissau

A tua pele é luzidia

como a lama das bolanhas depois das lavras:

o teu sorriso é igual ao primeiro arroz que germina

e os teus dentes são brancos...

Não preciso de dizer o teu nome

porque todos sabem quem tu és.

Artur Augusto da Silva

CONQUISTA

Djosa, nasceu a 1944 em S. Nicolau, Cabo Verde

Agora sou capaz

De tudo

Indiferente e quedo e mudo

Deixarei escangalhar o brinquedo

Que temi na Infância,

Rasgou-se o céu em mil fatias lindas

Pedro Corsino de Azevedo

E SÓ NESSE DIA OUTRO BORGES NÃO SERÁS

Djim Graça, nasceu a 1937 em Ponto do Sol, Santo Antão, Cabo Verde

Nem o sul e as pampas ou o degolado templo

De Dagon o sabem - do antigo e secreto caminho

Que a teus olhos de volta conduz. A mão dita-te

O epitáfito e lê-te a rosa do esquecimento qu'inda luz.

Vadinho Velhinho

FOLHAS DA SELVA

Aldo Bonadei, nasceu a 17 de junho de 1906 em S. Paulo e faleceu a 16 de janeiro de 1974 na mesma cidade, Brasil

De repente

caminham em fila na trilha — 

formigas tucandeiras.

De manhã, a brisa

encrespa o igarapé

e penteia as águas.

Roupas estendidas —

o clarear dos relâmpagos

alveja o varal.

Aníbal Beça

FEBRUARY MON AMOUR

Aldir Mendes de Sousa, nasceu a 17 de maio de 1941 em S. Paulo e faleceu a 12 de fevereiro de 2007 na mesma cidade, Brasil

janeiro não disse a que veio 

mas fevereiro bateu na porta 

e prometeu altas coisas 

'como o carnaval', ele disse.

fevereiro é baixinho,

tem 1,60 m e usa costeletas 

faria melhor propaganda 

do festival de glastonbury. 

pisquei ligeira nas almofadas:

'nem tô, fevereiro 

abandonei o calendário'. 

'você é um saco', ele disse 

e foi cheirar no banheiro.

Angélica Freitas

EM JULHO NO LUBANGO

Lino Damião, nasceu a fevereiro de 1977 em Luanda, Angola

Há uma bruma matinal até o sol ser todo

luz que se filtra numa calma azul

sem nuvem o céu se faz de um infinito

para além dos largos ombros das colinas

Manuel Rui

EXÍLIO

Nelo Teixeira, nasceu em Luanda, Angola

Eu vivo na minha terra

Mas estou exilado,

Quem vive nela não sou eu

Mas outro que em mim vive.

A minha terra está por vir

E o meu outro ser vive, vive...

... vive à espera desse porvir

António Cardoso

SOCOPÉ

Iolanda Esteves, nasceu a 11 de dezembro de 1954 em S.Tomé, S.Tomé e Príncipe

Os versos longos da minha ilha

são agora a sombra do ocá,

névoa da vida,

nos dorsos dobrados sob a carga

(copra, café ou cacau - tanto faz).

Ouço os passos no ritmo

calculado do socopé,

os pés-raízes-da-terra

enquanto a vez do coro

insiste na sua queixa

(queixa ou protesto - tanto faz).

Monótona se arrasta

até explodir

na alta ânsia de liberdade.

Manuela Margarido

POR TI

Ilídio Jordão, nasceu a 7 de setembro de 1972 em S.Tomé, S. Tomé e Príncipe

A tarde vai caindo e nostalgicamente

arrastando o meu dilúvio de ternura.

Por ti espero ainda

no breu da noite imensa

na raiva que a paixão derrama e sangra

e é o tam-tam da madrugada que me obriga

a apagar da memória 

a tua imagem

Olinda Beja

POEMA

de Matos, nasceu a 1942 em Cantanhede, Portugal

A minha vida é o mar de Abril a rua

O meu interior é uma atenção voltada para fora

O meu viver escuta

A frase que de coisa em coisa silabada

Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro

Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações

Olho e confronto

E por método é nu meu pensamento

Sophia de Mello Breyner Andresen

LEMBRA-TE

Graça Morais, nasceu a 17 de março de 1948 em Vieiro, Trás-os-Montes, Portugal

Lembra-te

que todos os momentos

que nos coroaram

todas as estradas

radiosas que abrimos

irão achando sem fim

seu ansioso lugar

seu botão de florir

o horizonte

e que dessa procura

extenuante e precisa

não teremos sinal

senão o de saber

que irá para onde fomos

um para o outro

vividos

Mário Cesariny